A reforma da lei falimentar e a competência do juízo da Recuperação Judicial para deliberar sobre a essencialidade dos bens de capital do devedor.
O instituto da recuperação judicial tem como objetivo viabilizar a superação de situação de crise econômico-financeira temporária do devedor, a fim de possibilitar a preservação da fonte produtiva de riquezas, assegurando a sua função social e a fonte de renda dos trabalhadores.
Nesse contexto, a Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falência - LRF), prevê mecanismos legais de proteção do patrimônio do devedor, os quais permitem preservar a empresa em crise, mas com respeito aos interesses dos credores envolvidos.
A exemplo, pode-se citar a suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares dos sócios, referentes a créditos sujeitos à recuperação judicial, cuja suspensão era prevista na redação primitiva do caput do art. 6º e foi mantida no texto do inciso II, do mesmo art. 6º, após a edição da Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020 (Reforma da lei falimentar).
Ainda assim, há créditos que não se sujeitam às normas previstas nessa legislação especial, como no caso de dívidas tributárias devidas à Fazenda Pública Municipal, Estadual ou Federal, o que impõe ao devedor a responsabilidade de aderir a programas de parcelamento e refinanciamento de dívida fiscal, sempre que possível.
Com efeito, as execuções fiscais ajuizadas contra o devedor não são suspensas em razão do deferimento da recuperação judicial, pelo que seu processamento é regido pelas disposições constantes na Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980 (Lei de Execuções Fiscais – LEF). Por este motivo, se o devedor não adimplir com o débito tributário ou garantir a execução, nos termos do art. 9º da LEF, poderá ser penhorado qualquer bem de propriedade do executado, à exceção daqueles considerados impenhoráveis.
Todavia, a prática de atos constritivos contra o devedor é uma invasão patrimonial grave o suficiente para frustrar a tentativa de recuperação fomentada pelo Estado, o que justifica a intervenção do Poder Judiciário nos casos em que a penhora recair sobre os bens de capital considerados imprescindíveis para o soerguimento da empresa em processo de recuperação judicial.
Frente a essa problemática, o Superior Tribunal de Justiça afetou, em sessão eletrônica realizada entre os dias 14/02/2018 e 20/02/2018, os Recursos Especiais de nº 1.694.261/SP, 1.694.316/SP e 1.712.484/SP (de forma conjunta) sob a sistemática de julgamento dos recursos repetitivos, fixando a seguinte tese jurídica: Possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial em sede de execução fiscal, representada pelo Tema nº 987 do STJ. Na mesma oportunidade, o Ministro Relator Mauro Campbell Marques determinou a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem em território nacional. Posteriormente, em 10/05/2019, a controvérsia analisada pelo STJ foi abrangida às dívidas tributárias e não tributárias, oportunidade em que foram afetados os Recursos Especiais de nº 1.760.907/RJ, 1.757.145/RJ, 1.768.324/RJ e 1.765.854/RJ.
Dessa forma, a análise da tese sob a sistemática de julgamento de recursos repetitivos do STJ teve por objetivo debater e pacificar o entendimento relativo à possibilidade de prática de atos constritivos contra devedor em processo de recuperação judicial, ante o evidente risco aos objetivos pretendidos com a instauração do procedimento recuperatório.
Entretanto, em recente decisão publicada em 20/04/2021, o Ministro Relator Mauro Campbell Marques determinou a desafetação do Tema nº 987 do STJ, com fundamento nas disposições legais introduzidas no ordenamento jurídico através da Lei nº 14.112/2020.
Isso porque, a Lei nº 14.112/2020 aprimorou a norma disposta no artigo 6º, da LRF, através da atualização do texto apresentado no seu caput e da inclusão de ponderações (na forma de parágrafos) relativas às consequências da decretação de falência e do deferimento do processamento da recuperação judicial.
Dentre as disposições legais acrescentadas pela Lei nº 14.112/2020, foi incluído no artigo 6º da LRF o parágrafo 7º-B[1], em que é atribuída ao juízo da recuperação judicial a competência para determinar a substituição de atos constritivos que recaiam sobre bens de capital considerados essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento do processo, o que deve ser concretizado mediante cooperação jurisdicional entre os juízos envolvidos.
Em consequência, os Recursos Especiais outrora afetados pelo Tema nº 987 do STJ foram considerados prejudicados, tendo em vista que a problemática foi superada pela disposição prevista no artigo 6º, parágrafo 7º-B, da LRF.
Portanto, é possível a penhora de bens do devedor em recuperação judicial para pagamento de dívida fiscal, mas desde que a constrição não recaia sobre bens de capital considerados essenciais à atividade desenvolvida pelo devedor, cuja análise e deliberação compete ao juízo responsável pelo processamento da recuperação judicial.
Dessa forma, apesar da não sujeição dos créditos tributários ao processo de recuperação judicial, nota-se considerável preocupação do legislador com a proteção dos bens de capital essenciais à atividade empresarial do devedor, como forma de impedir a frustração do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores e homologado pelo Estado.
Por fim, como consequência à referida desafetação, a Primeira Seção do STJ cancelou o Tema nº 987[2], inclusive, determinando a devolução dos processos que se encontravam sobrestados, a fim de que seja restabelecida a marcha processual, com atenção às regras de competência estabelecidas pela Lei nº 14.112/2020.
[1] Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020) (...) § 7º-B. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica às execuções fiscais, admitida,
todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
[2] Primeira Seção cancela repetitivo sobre constrição de empresa em recuperação judicial no âmbito de execução fiscal. Superior Tribunal de Justiça, Brasília, 30 de junho de 2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/30062021-Primeira-Secao-cancela-repetitivo-sobre-constricao-de-empresa-em-recuperacao-judicial-no-ambito-de-execucao-fiscal.aspx. Acesso em: 16 jul. 2021.
Autor
Sólon Almeida Passos de Lara
Advogado.
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